Mulher e Corpo (de baiana)
- marlavaz
- 27 de fev. de 2016
- 3 min de leitura

Costumo dizer que minha cabeça é de cidadã do mundo, mas meu corpo é de baiana.
Quando acordo, por mais que me esforce para ser rápida, qual! Arrasto-me pela casa, atrasando tudo!
Primeiro delicio-me, na varanda, aspirando o verde das árvores. Em seguida, languidamente, deslizo para o ritual do chá. Mansamente, pego o bule de ferro fundido japonês, e coloco uma porção de chá inglês. Despeço-me do lord pó, com a mesura de um coador canadense. Ponho, então, o real líquido numa chávena americana (heresia não, vitória da ex-colônia). Com um garfinho de prata, relíquia do faqueiro do enxoval do ex-casamento, boto um pedaço de cuscuz nordestino num pratinho de porcelana alemã, remanescente do único gesto rápido de minha vida – o divórcio.
Então, lentamente, mastigo 100 vezes cada pedaço e vou sorvendo o chá por cerca de uma hora. Muito tempo? Isso não é nada, o oriental leva quatro horas! Quem sabe, oriental tenha alguma coisa de baiano.
Por isso, fui praticar o tai-chi-chuan. Encaixo o corpo dobrando um pouco as pernas, viro as palmas das mãos para cima, ficando na posição denominada mapu, por horas a fio, contemplando o nada... Porém, de acordo com meu amigo Reinaldo, economista de esquerda, embora bem sucedido no capitalismo, meu negócio não é bem essa luta marcial. Segundo ele, quero ficar nessa postura contemplativa ostentando minha conquista de vida – olha gente, to aqui fazendo nada!
Acho que ele tem razão, pois quanto mais tento ser oriental, mais ocidental eu fico. Porque meu karma é esse corpo de baiana.
Todavia o melhor mesmo foi quando entreguei meu corpo a um massagista japonês. Transpus o santuário do ”Massagens para Executivos”. Porém, meu primeiro gesto não foi lento. Tive que abrir, rapidamente, a carteira para pagar o carnê. Em seguida, fui conduzida a uma sala oriental com tatame e tudo.
Entrementes, surge do universo, num grande salto, um japonês baixinho e largo e, com as rápidas mãozinhas, torce meu pescoço, colocando meu rosto nas costas (lembram do filme Boneco Assassino?). Gente, tive que sufocar um grito pronto, porque novamente meu pescoço foi torcido para o outro lado, e o japonês indagava: “Senhola tem muitas dívidas? Polque pescoço muito dulo.”
Nem ousei negar, confirmava tudo, até quando fui atirada sobre o colchonete, enquanto o japonês torcia meus membros, desafiando as leis da física. Não conseguia berrar por sequer uma dor, porque uma dor emendava na outra. Contudo, o pior estava por vir.
O japonês virou-me de costas (pensei, é agora), saltou sobre minha coluna gritando sons e palavras ininteligíveis, traduzidas depois por meu amigo, o engenheiro Williams Diaz: “Viva, mais um carnê!”
Daí, entendi porque se paga adiantado. Além disso, dois grandes amigos, não baianos, me perguntaram pra que eu paguei o japonês se eles podiam me dar porrada de graça. E eu respondi: “Agora é tarde, já paguei”.
Saí dessa câmara de tortura, para ser sobmetida a uma sessão de acupuntura elétrica, mas dia seguinte cada ponto acupuntado inflamou!
Acreditem, só dei fim ao masoquismo, rasgando o restante do carnê, quando o japa deu num salto mais vigoroso sobre minha coluna, e o tecido da pele abriu! O Marquês de Sade teria ficado orgulhoso do discípulo com o sangue jorrado.
Agora, se você está pensando em comprar um carnê, de “olhinho fechado”, alerto que nossos japoneses são mais criativos que os deles.
E bote criatividade nisso!
( Publicado no Jornal A Tarde, Bahia, 1993 )
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