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Corpo de Baiana na Lavagem do Bomfim


Convencida pelos amigos de que pior do que pegar um coletivo para ir à lavagem do Bomfim é o arrependimento por não ter ido, arrasto meu corpo de baiana em direção ao ponto de ônibus no Campo Grande, com minhas amigas. Porque dirigindo meu carro seria impossível, e eu queria testar minha baianidade.

Lá encontro uma enorme fila pontuada de roupas brancas, devotos cúmplices na certeza dos pecados que irão cometer e, por isso mesmo, pagando com antecedência uma penitência para obterem o perdão de Oxalá – pegar um ônibus em Salvador!

Após longa espera, chega o “humilhante” que permanece de portas fechadas ou “fazendo horário”. Contudo, ninguém reclama, porque baiano não se importa, quer mesmo é chegar devagarzinho, que é para não cansar.

Dentro do ônibus apinhado, eu e minhas amigas, de pé tentando nos livrar dos homens que passavam querendo “fazer terra”, quando percebo todos amedrontados. Entrou uma criança negra, descalça e sem camisa. O pobre garoto levantou as mãos mostrando umas cédulas, como se dissesse, calma gente, tenho dinheiro.

De repente o “buzu” parou no ponto das Mercês. Entre atritos de corpos( esfrega o jornal censura), algumas pessoas espremidas saltaram. O ônibus vai saindo e, de repente, estanca, atendendo um pedido na calçada. Alguém saltou, mas perdeu a amiga dentro do ônibus e grita: Vera! E todos passam a gritar em coro: Vera! Vera!

Passado um tempão, ouve-se o balançar do molejo de um corpo e um sussurro: “Ôxente, gente, que pressa é essa, já to indo”. Isso, só se vê na Bahia ....

Após sufocos e suores, ah! os cheiros baianos, saltamos na Praça Castro Alves e descemos a ladeira da Conceição da Praia, onde nos benzemos. Ao chegar ao Mercado Modelo, um jornalista sueco indaga, “Como é viver na Bahia? Respondo que temos uma vida horrorosa, pois caímos na gandaia desde 04 de dezembro, Dia de Santa Bárbara, e só paramos nossa maratona de festas no Carnaval. E ele pergunta: “E depois?” E eu, prontamente: “Aí passamos o resto do tempo descansando, porque afinal baiano não é de ferro.”

Adiante, na Associação Comercial da Bahia, sou apresentada ao gaúcho Jacaré, autor do conhecido “Manual do Machão”, que apoiados pelos cúmplices baianos, disserta sobre os direitos da mulher. Artigos: 1º. Mulher não tem direito algum. 2º. Em caso de dúvida consulte o artigo 1º. E ,ao meu ouvido, ele sussurra que mulher boa é mulher feminista, porque quanto mais ódio melhor (Em plena Lavagem....).

E voltar para casa? O ônibus saiu da Colina Sagrada às 18 h e aportou no Teatro Castro Alves às 22:20! No percurso, as pessoas saltavam, almoçavam, bebiam, iam ao banheiro, namoravam nas calçadas e depois voltavam para o mesmo ônibus ainda preso no engarrafamento. Passaram a constituir uma grande família, todos íntimos como só baiano sabe ser, trocavam endereços e telefones, acertavam batizados, feijoadas, liderados pelo patriarcado do motorista, que chamava - “Vem fulano, tô arrastando o carro!” “Chama fulana na casa azul, ela foi verter água!” Ôi, meu, naquela barraca tem uma geladinha”

A viagem quase acabou na metade do percurso, porque o motorista pagou picolé para todos e implorou que voltassem andando para suas casas, enquanto ele recolheria o veículo.

O pacto já estava quase consumado, quando, sem nada entender dois argentinos, cozidos pelo sol, balbuciavam moribundos: “Nosotros desejamos la muerte!” No que foram apoiados por uma senhora gordinha: “Para onde o senhor for, até mesmo para sua casa, eu vou também. Daqui não saio!


E não saiu.

Minha gente, já ia esquecendo! Na confusão da lavagem da escadaria da Igreja do Bomfim, um homem gentil me emprestou um lenço para enxugar o suor. A quem possa interessar, procuro o Cinderelo que perdeu o seu lenço na Lavagem (Aceita-se recompensa).

( Publicado no Jornal A Tarde, Bahia em 22 de janeiro de 1993)

ESCRITO POR MARLENE VAZ

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